Não sei bem porque voltaram com tanta força as memórias do meu avô. Já lá vão tantos anos, precisamente 29 anos e 53 dias. Penso nele muitas vezes, mas agora com filhos cada vez mais e cada vez que me vem à memória encontro novos detalhes, como se agora a pensar na relação que os meus filhos têm com os avôs, eu me lembre do que foi ter os meus.
Vivi perto do meu avô, durante quase dez anos. Quase dez… não me viu encher duas mãos de aniversários e lembro-me que quando os fiz, ainda estavam todos de luto, tristes e sem saber bem como é que de repente tinham passado de uma família feliz, para uma sem um grande pilar.
Lembro-me bem daquele dia, dia 1 de Setembro 1989. Na verdade lembro-me bem do dia 31 de Agosto, porque no dia 1 de Setembro só o vi uns minutos, e foram durante a madrugada. Não me lembro de alguma vez acordar tanto durante a noite como naquela, não me lembro de estar tão cansada nem tão irritada por não conseguir dormir… hoje sei bem porquê. Eu tinha 9 anos e senti que precisava acordar.
Falar desta noite é como apaziguar o medo que tive e senti naquela hora. Estávamos a passar uns dias antes das aulas começarem, com os meus avós, paternos, os únicos que vivam em Lisboa que que podiam ficar connosco enquanto os meus pais trabalhavam. Os dias eram tranquilos, andar de bicicleta pelo bairro, ir com o avô ao gelado depois de almoço ao jardim, tomar café com ele e os amigos, apresentar-nos orgulhoso a todos os que o cumprimentavam. Tratar de compras para o lanche, pão fresco, bolachas e sumos… e nessa dia 31 de Agosto houve tempo para comprar flores para a avó. Lembro-me de achar que eram ainda namorados.
Vimos televisão, lemos umas histórias juntos, pediu-me para deixar de chuchar no dedo explicando que o meu dedo iria cair, mas sempre com uma voz calma e lógica, só ao pé dele é que fazia o esforço de não chuchar. Não me dava nada em troca, simplesmente esperava que eu não o fizesse. Era assim para mim, sem pressas, sem pedidos.
Adorava saber mais sobre a natureza, lia-nos a enciclopédia dos insectos como se de uma aventura se tratasse e nós, a minha irmã e eu, mesmo cheias de nojo e medo daqueles bichos ouvíamos como se o fosse também.
Mas naquela madrugada eu não ouvi a sua voz, mas sim um respiro forte, intenso, mas tão difícil. Levantei-me e fui chamá-lo, mas não me ouviu, fiquei a ouvir até que deixou de haver respiro algum… hoje sei o que foi, naquela noite achei que finalmente tinha adormecido. A minha avó acordou e logo percebeu que algo se passava. Ao terceiro grito, escondi-me.
Acho que o medo fez-me adormecer. Mas acordar com alguém que te pede para te vestires rapidamente porque o meu pai estava ali fez-me não querer de todo sair.
Mais do que perceber o que se passou naquela noite, e perceber que não era bom, foi ver o meu pai assim… não era um pai, mas sim um filho, triste, sem norte a precisar de conforto. Foram dias assim, cheios de lágrimas, tristeza e momentos para distrair “as miúdas”.
No dia do funeral saímos do cemitério e senti pela primeira vez que ele nunca mais ia voltar. Lembrei-me então do último passeio ao jardim do Campo Grande e remar com ele nos barquinhos, comer um gelado e dar pão aos patos.
Talvez por isso não me saia da cabeça, tenho voltado ali algumas vezes ultimamente e penso tanto nele e no que ele quereria fazer com os bisnetos. Foram só quase 10 anos, mas ele teria preferido viver para sempre.